Capítulo IX: Novamente, a Fazenda e coisas mais
Meu irmão mais moço, Antônio, e eu costumávamos passar as
férias na Fazenda Cachoeira, depois que a mamãe se mudou com a filhada para a
cidade, para estudarmos. Entre as muitas lembranças de então a da pesca de
lambaris nos remansos espumosos do ribeirão, coalhados de folhas, gravetos,
garranchos e o que mais a correnteza carrega, que costumavam enroscar o nosso
anzol de pescador. Senão, usávamos o tanque da chácara, também piscoso, que
papai construíra num plano do sopé da encosta, alimentado pela sua pequena
nascente, propícia a tal a vegetação do lugar, além das águas vertentes, que
desciam da serra na estação chuvosa, e que ele peixara com espécies do ribeirão.
As suas águas serviam de bebedouro para o gado em pastoreio na manga, que tinha
nome de pasto do Tanque ou da Chácara. No inverno e nas águas, era comum a
névoa encobrir toda a encosta, cujo cafezal, da parceria com o seu Efigênio Andrade,
dava-lhe um verde intenso, emoldurado pelas muitas árvores e vegetação nativas.
(Então, eu ouvia o papai falar na variedade burbom, que acho
seria o plantado na chácara e nos quintais.) Aos poucos, a bruma, algo
corrubiana como acontece aqui, era afugentada pelo sol. Eu gostava de ver
aquilo pela manhã, da varanda da casa sede, de onde também, em época de capina
e de apanha do café, acompanhava a movimentação dos trabalhadores e dos
cargueiros, transportando o café para o terreiro ladrilhado da casa sede. Um
pouco pra baixo do tanque f cava outra mina ou olho d'água, que nascia num
lacrimal coberto de taboas, chapéu de couro, juncos e outras espécies aquáteis,
que, após represada e servir de bebedouro ao gado que lá pastorava, escorria
pelo valado adrede aberto.
Atravessando o quintal de canas, do lado direito da casa
sede, ia o regato servir a porta da cozinha. Outro braço desaguadouro, à
esquerda, ia abastecer de água a casinha de ordenha, onde ficava a queijaria e
a moradia de vaqueiro casado. O estreito canal ou rego era freqüentemente
limpado de folhas e entulhos mais, que teimavam obstruí-lo. Até hoje surde ali
a preciosa água, embora com menor vazão. No quintal da casa sede, próximo de
onde ficava a antiga bica d'água de madeira, que despejava mais de telha do
precioso líquido, o Arnaldo represou-a em comportas de alvenaria, onde cria e
recria tilápias. Encanada a partir dali, vai servir a casa sede. Já não há o
bicame; não há água suficiente para isto. (O que será desse povaréu, com o
minguamento das águas, senão, em muitos casos, sumiço das nascentes, descuidadas
pelo Governo, pelos proprietários dos terrenos e diminuição das chuvas? E o
calor escaldante, conseqüente ao aumento da temperatura do planeta, reconhecida
pela própria ONU, faz presença inclemente, preocupante. Aliás, alguém do povo
me disse, com seu jeito de entender os mistérios do tempo: Estão falando
que o Sol desceu ou a Terra subiu! Se não fora estapafúrdia a
idéia, seria boa versão para o grave momento, sob comando de El Niño, o tendeiro
da vez! Os tempos hodiernos estão diferentes dos de meio século atrás! Eu teria
uns 15 anos de idade quando li nalguma publicação do papai, lá mesmo na
fazenda, da eventualidade do aquecimento do planeta. Embora as modificações
climáticas ocorram muito lentamente, imperceptíveis quase, estão aí, cerca de
50 anos depois da notícia, o que nos faz conjeturar o que virá proximamente! [...]).
Voltando à pescaria de antanho, depois de horas à beira do
córrego a gente levava pra casa, numa fieira, em formato de forquilha ou num
encambado de embira de malvarisco, fazendo as vezes de samburá, pencas de piaus
de nadadeiras raiadas de vermelho, piabinhas ou lambaris, apanhados na féria do
dia – de que logo depois a boníssima Maria Domingas preparava para nós
saborosas fritadas, empanadas em fubá. A gente não se contentava de comer um,
dois ou três peixinhos, mas sim quantos perdurassem na travessa. A gula pedia
mais e mais crocantes petiscos, tão bem passados pela boa cozinheira.
Até o papai e os vaqueiros iam pescar mandis e
traíras, à noite, quando as chuvas de final de primavera ou já em curso o verão
faziam o ribeirão subir vezes sem conta e derramar-se sobre as margens,
inundando as largas e extensas vazantes de arroz, que fecundava, cultivadas
pelo seu Efigênio Andrade, em parceria com o papai. (Só depois eu tomaria conhecimento
dos campos de arroz de sequeiro, que fazem a riqueza do pampa gaúcho, que a
gente nem imaginava existir, conhecedor que era apenas do de alagados. Quando
vejo rizicultores trabalhando em vazantes, com água até os joelhos, lembro-me
do seu Efigênio Andrade, as calças dobradas, plantando ou ceifando o cereal nas
vazantes da fazenda, à semelhança china.) Então, ao amanhecer depois de noites
de muita chuva de verão, o que era freqüente, eu corria à borda do terreiro da
cozinha, para ver o ribeirão cheiíssimo, transbordante. De lá gostava de ver a
vazante inundada de água turva, encobrindo a vegetação – que, depois, ao
baixar, deixava sedimentos que a fertilizavam e propiciavam ubérrima produção
do cereal. (Mais tarde, compreenderia a observação do historiador grego
Heródoto, de que O Egito é uma dádiva do
Nilo.) Dizia-se que esses peixes maiores,
a cuja pesca íamos nessas ocasiões, só se aproximavam do anzol com a água
avolumada e suja da terra levada pela torrente à calha do ribeirão. Então, à
noite, a gente ia com os adultos à pescaria, sentindo-nos os tais à beira do
ribeirão, fora de horas (que porém nem tão tarde era, senão para nós criançolas!).
Às vezes, a aventura nos levava, com papai e serviçais, até a represa da usina,
aquele mundão d'água piscosa, como nos parecia, que também atraía pescadores de
derredor e até da cidade, munidos de caniços longos, que, mais do que os nossos,
alcançavam longa distância da margem. Porém, ainda não havia molinetes nesse
mundinho tacanho. Antecedia a pescaria a azáfama do preparo de varas de anzóis
encastoados em trançados de arame, para proteger a linha da serrilha dos peixes,
os lastros de chumbo para fazê-los afundar n'água, e as minhocas, que,
apanhadas em locais úmidos, eram aquarteladas em samburás forrados com o húmus
em que recolhidas e levadas hidratadas à beira d'água, para servir de isca. Às
vezes, levávamos também a nossa matalotagem, para comermos à beira d'água, algo
como piquenique que era aquilo, e aprestos para enfrentar mosquitinhos-pólvora,
que vinham zunir e picar as orelhas do pescador, que, na tentativa de
afugentá-los, se viam obrigados a se estapear, a praguejar e a se irritar.
(Pois, não há
mesmo prazer que não tenha o seu desgosto, o seu contrário, como diz
a sabedoria popular!) Aí, os que eram fumantes baforavam de cigarros de fumo de
rolo, como os serviçais, ou de indústria, como o papai, na tentativa de
afugentar os incômodos e persistentes maruins. Senão, era fazer uma fumaceira
perto, com trapos de pano, folhas secas ou úmidas, sabugo de milho e não sei o
que mais, de combustão lenta, à falta dos modernos repelentes. Cada pescador
adulto quase sempre pescava pelos menos uns dois ou mais peixes graúdos, o que
já era motivo de festa. Porém, qualquer de nós que apanhássemos mais peixes do
que os outros, pequenos ou grandes, ouvia logo a irônica pecha quanto
mais bobo, mais peixe! Antônio tinha um medo dos diabos
da ferroada de traíra e mandi, donde, das raras vezes em que os fisgava, era
algum adulto que os retirava do anzol. Se a pescaria não rendia logo, o papai
não demorava a perder a paciência, sôfrego que sempre foi. Então, era voltarmos
a casa, samburá vazio ou pouco fornido, e aguardar outra oportunidade para
repetir o divertimento.
No ribeirão de casa, a gente costumava deixar o anzol ferrado
n'água, na esperança de fsgar peixe taludo, como piau, traíra ou mandi, que,
para nós, pescadores de lambari, era façanha e tanto. Na manhã seguinte,
ansiosos para ver o resultado da empresa, corríamos ao local. Se constatávamos
que a vara, ao ser movimentada para trás, se curvava em arco com o peso da presa
fisgada, era rir de orelha a orelha e coletá-la, com cuidado, senão levar o
pescado suspenso no anzol, exibindo-o, para logo ser consumido no almoço. A
mamãe tinha um medo sem igual das espinhas desses peixes maiores, como a traíra, além do piau, que tem a espinha em forma de
ípsilons (yy) entranhada na carne, o que não deixava de nos contagiar.
Certa vez, a vara arqueada trouxe baita surpresa: o apresado era um pequeno cágado,
que o povo chama de sapo-concho! Deu um trabalhão danado livrá-lo do anzol e
devolvê-lo à corrente d'água, ante a sua insistência de recolher o longo
pescoço, com anzol e tudo, às entranhas sob a carapaça. Vai, quelônio, vai!,
foi afinal a nossa palavra de ordem ao vagaroso réptil, que então se meteu
n'água de novo, naquele nado cachorrinho. Melhor tivesse o anzol se enroscado
nos juncos que margeiam o corgo, do que aquilo. Mas valeu a curiosidade de fisgar bicho tão diferente, parente, parece,
do jabuti e da própria tartaruga, de maior porte, que, claro, inexiste por
aqui.
Os rebojos piscosos do ribeirão Jambeiro – formado pelo vertedouro da
represa da usina –, que passa pela fazenda, eram também propícios à nossa
natação incipiente. A gente pulava da ponte num desses redemoinhos d'água, onde
a água quase não dava pé. Dávamos as nossas braçadas e pernadas, com o que logo
alcançávamos vau, pouco extenso que era o fojo do pequeno curso. Engraçado: há
pouco tempo estive no local com o irmão desses folguedos. O local, diferente, o
ribeirão, acanhado, quase rasoura ou varador só, a ponte não está no mesmo
lugar, foi arredada um tantinho pra baixo donde ficava, nem tem a altura de
antes, quando a água das cheias chegava quase a cobri-la e torná-la ponte
afogada; agora, parece de menor caudal. Ou seria porque, como ressabido, demuda
a dimensão do mundo entre a visão da criança e a do adulto? Porém, perto dali,
no início da cerca de arame farpado, varando espigão, na confrontação do pasto
do Borges com o da cozinha, como cógnitos esses pastios, continua de pé o
mourão de braúna, de ponta chanfrada, pra não juntar água de chuva. Braças de
rodo o cujo, já desbotado o negro da madeira, dando mostra das mazelas do tempo.
Fora fincado como mourão da então recém-confeccionada cerca de arame farpado,
de quatro fios, tesos que nem corda de violão – por certo, arte do seu Luis
Pires. Tão parrudo o madeiro, que nem careceu de estronca para firmá-lo chão
adentro, para não se mover com a torção do aramado. Serviria ainda, a partir
daí, para demarcar o tempo vindouro! A mando do papai, cravei-lhe a formão a
data, já bosqueja, de 19 de julho de 1963. O então quase-cunhado Otacílio
Marilac, vindo da Fazenda Marinheiro, onde tinha naco de terras, com destino à
cidade para noivar minha irmã (com quem se casaria em 21 de dezembro seguinte),
ficou escarranchado e fumando por meia hora ou mais à sela do cavalo ajaezado,
sobre a ponte, olhando ali perto o meu labor de entalhador das dúzias (expressão
da mamãe, para designar algo pouco valioso), para depois, concluída a datação
do grosso tronco, seguirmos em conversê a penates. Faz pois meio século –
e lá vai pedra! – o episódio.
[...]
Para mim, essa é uma das passagens mais bonitas do livro. A riqueza de detalhes é impressionante, e o relato muitíssimo interessante.
ResponderExcluirAcho que você não tem ainda um exemplar do livro, não é mesmo, minha Bella? Cuidarei de suprir essa omissão. Você, como sabe, é uma leitora absolutamente predileta, para mim e também para o autor.
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